sábado, 16 de julho de 2016

O trem.

Faz 18 anos que entrei pro mundo acadêmico. Comecei na casa mais tradicional paulista - a histórica Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo de 1933. Casa por onde passaram Radcliffe-Brown, Herbert Baldus, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro, Gabriel Cohn, Fernando Henrique Cardoso, Mário de Andrade, Emilio Willems, Sergio Milliet, entre outros como professores, diretores, estudantes. Fui aluno de Edmilson Costa, Guaracy Mingardi, Angela Alonso, Julio Simões, Iris Kantor. De lá pra cá, comecei a estudar a violência e imiscuir-me no campo da pesquisa - indicadores e estatísticas. No ultimo ano da graduação fui ser assistente do professor Guaracy na secretaria de segurança de Guarulhos-SP, mapeando e fazendo a estatística dos homicídios na cidade. Logo em seguida comecei a pós em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da USP. 

O "campo", porem, começou bem antes. Por volta de 87, 88, entre a escola e a favela do Piqueri - jogando bola na quadra, empinando pipa pela linha do trem, nas festinhas do bairro e na porta da escola. Assim conheci a malandragem, o tabaco, o álcool, as drogas, o crime e a violência - não nessa ordem e nem de uma vez. Aos poucos, naturalmente, convivendo sem pressão cotidianamente. Os meus interlocutores e referencias, além da família e dos professores, sempre mais envolvidos com as pressões e responsabilidades que a sobrevivência os impõem foram os que seguem a margem - e a margem é sempre imensa, envolvente, arrebatadora. Aos 13 já estava no skate, no pixo, na gang, no cigarro, álcool, cola, benzina, carbex, maconha. Consequentemente já furtava, brigava, confrontava toda ordem e autoridade formal. Por essa época conheci os primeiros cadáveres no bairro - Dentinho foi assassinado pela PM na favela fugindo de uma abordagem e o Português caiu de moto e também morreu em fuga. 

Foi essa realidade cotidiana que me preparou pra universidade, me escaldou pro que viria na cátedra e as bases de pesquisa, com seus intermináveis eventos - seminários, simpósios, congressos, conferências, fóruns, palestras, debates, rodas de conversa, etc. Muitas vezes, quando saía de um ou outro, pegava o trem na Luz ou na Barra Funda na volta pra casa e descia no Piqueri. Antes de ir pra casa, parava no bar do Baixinho na favela pra tomar uma, pra voltar pra realidade e afrontar o debate palatável, pasteurizado e confortável da cátedra. Muitas vezes nem conversava, me sentia desconfortável, ficava na minha, só ouvindo o buxixo da vila - fulano "tá pedido", sicrano "tá vacilando", beltrano "tá preso", "subiu", "o bagulho tá doido".  Chegava em casa e pensava, quanto disso não cabe naquilo? Lembrava do sujeito que dizia que "hoje a PM tem o policiamento comunitário e formação em direitos humanos", enquanto o fulano no bar comentava sobre o "acerto" de sicrano com a PM pra evitar o esculacho. Do outro que comentava que "as estatísticas de homicídio caíram", enquanto o camarada no bar falava sobre um e outro que haviam "sumido na quebrada".  Do outro que dizia que "a droga é o potencializador da violência", enquanto o doidinho inofensivo da favela aceitava um copo de cerveja meu e me oferecia a droga dele que eu sabia que era tudo que ele tinha. 

Em março agora estive no RJ. Antes já estive por lá, vivendo em 2005, 06 e 14. Numa manhã peguei o trem em Deodoro com Rossana - era a segunda vez dela no trem carioca. Íamos pra Central. Havia um rapaz no nosso vagão, adolescente, entre 16 e 17 anos. Esculachado, abusado. Cantava funk e falava alto com quem estivesse disposto a conversar com ele. No trecho conversou com umas duas pessoas e incomodou quase a composição inteira. Era notório o desconforto de diversas pessoas com a presença dele pelo que dizia pra todo mundo ouvir. Contava sobre os acontecimentos na comunidade de Antares, sobre um ou outro que convivia ou conviveu por lá. Segue um pouco daquilo que lembro e ouvimos: "O Coisa Ruim não aceita oração não! A varoa chegou lá pra fazer pregação na boca, e todo mundo aceitou a oração de boa, menos o Coisa Ruim! A varoa não tinha medo não, novona, uns 30 anos, mó bonitinha!"
"Daí muleque, tu tinha que vê os menino botando o Caveirão pra correr lá no Antares! Só os cria, muleque! Cercaram o Caveirão só de AK, nada de pistolinha não! Boladão!"
"O Coisa Ruim, muleque, não queria saber de nada não! Só queria saber de matar! Todo dia o cara só falava de matar, que "ainda não matei um hoje." Quando o Bope chegava muleque, o Coisa Ruim deitava no meio da pista e era só a bala comendo pra cima do Caveirão!"
"É o Bonde do Jacaré! Bonde do Jacaré mata policia do Bope!"
"É o Bonde do Turano! AK47, glock e trateck! Pra subir aqui no morro alemão não se atreve!
É que o comando é vermelho e não admite falha! Contenção Turano é o bonde do mete bala!"
"O Coisa Ruim não tinha Deus no coração, muleque!" "Nóis tinha mó consideração pelo parceiro, mas, nóis segue sempre com Deus na humildade e na fé!" "Agora nóis só que se adiantar, arranjar uma mótinha e ficar de boa, sem atrasar o lado de ninguém, humildão e seguir a vida!" 

Desceu - ou melhor, saltou! - na estação da Quinta da Boa Vista, nós seguimos até a Central ouvindo os protestos e reclamações do "povo de bem" do trem - "bandido", "safado", "marginal", "devia estar preso", "vagabundo", "vai morrer logo", "depois a mãe vem dizer que era trabalhador, honesto, etc". Admito que ficamos meio atordoados com tanta informação e contradição em tão pouco tempo - logo pela manhã. Enfim, lembrei dos meus dias de debates, seminários, palestras, conferências na universidade, na graduação e pós e conclui que uns dias de trem no RJ, muitas vezes, valem mais que isso tudo - tem mais informação que em muitos trabalhos acadêmicos que já li e ouvi. Porque as contradições das ruas muitas vezes não se encaixam nos rigores acadêmicos, tampouco nas estratégias da política institucional.
  

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