domingo, 26 de abril de 2015

Poder político e manipulação: a estratégia da televisão (Rede Globo) no contexto da "integração nacional."

A historia da televisão brasileira começa com a inauguração da rede “Tupi” em 1950. Contudo, vai levar dezenove anos até ser veiculada a primeira transmissão em rede nacional do “Jornal Nacional” – Rede Globo. Apenas por este fato, a história da televisão brasileira poderia ser dividida em “antes da Globo” e “após a Globo”; entretanto, como veremos adiante, as determinações que levaram a esse fato não são menos importantes do que as suas consequências. O conglomerado Globo de comunicação começa em 1925, com a fundação do diário vespertino “O Globo”.  Em 1944, o Sr. Roberto Marinho funda a Rádio Globo, apoiando a deposição de Vargas em 45 e a eleição de Dutra neste mesmo ano. Treze anos mais tarde, em 1957 a concessão do canal de televisão seria assinada pelo presidente Juscelino Kubitschek. (FERREIRA, 1991, p. 161). No entanto, é consenso o fato de que apenas em 1962, ao assinar um contrato de parceria com o grupo norte americano Time-Life, começa a surgir o ambicioso projeto do império de comunicação Globo (Ferreira, Kehl). Conforme Kehl, o modelo “empresarial” da rede Globo de televisão é resultado desse contrato – no exato momento em que a economia brasileira se abre ao capital estrangeiro. Este contrato - alvo de inúmeras criticas de grupos empresariais da imprensa e da comunicação (“Diários Associados” e “O Estado de São Paulo”) ligados a setores políticos (deputados Carlos Lacerda e João Calmon) -, seria objeto de investigação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito iniciada em 66 e que arrastaria-se até 69; ano do famigerado AI-5 e, coincidentemente em que a emissora passaria a veicular uma transmissão em “rede” nacional - “Jornal Nacional”. De acordo com a autora, o contrato com o grupo Time-Life, alem de oferecer a rede Globo “assistência técnica” e financeira - (...) “administração, programação, publicidade, controle do capital, orientação técnica, contrato e treinamento de pessoal, construção e operação de canais, compra e venda de materiais de propaganda” (...) -; (...) “ofereceu a Globo uma espécie de “gerente geral” no Brasil, o Sr. Joseph Wallach, que mais tarde se naturalizou brasileiro e incorporou-se aos quadros administrativos da Globo, tendo sido um dos pontos de apoio do “tripé” de executivos da emissora: Clark, Boni e Wallach.” (KHEL, 1986, p. 181). 

O modelo empresarial da rede Globo vai redefinir as relações administrativas com a política do capital privado com o Estado. Homens “tradicionais”, nos negócios e na política, como o sr. Chateaubriand, dono do grupo Diários Associados (jornais, rádios e tv), já não preenchiam mais os requisitos exigidos por essa nova fase do capital. As novas determinações econômicas e o desenvolvimento tecnológico foram acompanhadas por mudanças nas relações de poder – elites econômicas e políticas emergentes. Homens modernos, empreendedores, visionários – quase “revolucionários”-, como desejavam os militares -, como o Sr. Roberto Marinho, Walter Clark, Mauro Salles, Joe Wallach e Boni, falavam da “(...) televisão numa linguagem empresarial que nada tem em comum com os códigos de quem pensa o veiculo em termos de produção cultural, (...).” O modelo global era pautado pelo profissionalismo estritamente empresarial, orientado pelo tripé: “produção, programação, administração/vendas.” (KHEL, 1986, p. 185). 

A autora sustenta que a relação da rede Globo com o capital e a tecnologia estrangeiros era conveniente aos militares naquele momento, pois, aliviaria o governo de incentivos e/ou favores a ainda incipiente e “artesanal” televisão; esta suposta “autonomia” técnico-financeira torna-se então o fato determinante para “convencer” os militares – já não se tratava de “incentivar”, mas, apenas de “viabilizar” a televisão. A “omissão” da caserna em relação a CPI, aliada ao oportunismo da rede Globo, convergem para o contexto de estratégias econômicas do governo que visava a emergente classe media e incentivava o mercado de bens de consumo duráveis (automóveis, TVs, eletrodomésticos, etc), aliada a constante produção ideológica (“Política de Integração Nacional e de Cultura”), culmina na ascensão da rede Globo de televisão nos anos 70 como a grande empresa, independente, autônoma, moderna e rentável.  



Hegemonia e poder.



“Os maiores triunfos da propaganda não se deveram a ação, mas sim a omissão de algum ato.” Aldous Huxley (“Admirável Mundo Novo”)
     

A hegemonia da rede de Globo de televisão coincide com a “Política de Integração Nacional”, idealizada pelos militares e inspirada na doutrina “desenvolvimentista” de segurança nacional da Escola Superior de Guerra (ESG). Quando a televisão surge no Brasil, em 1950, o Rio de Janeiro era a capital do país, centro dos acontecimentos políticos, de onde emergem todas as decisões e convergem as doutrinas políticas. Situada no Rio de Janeiro, a Escola Superior de Guerra (ESG), naquele momento – pós-guerra e Guerra Fria - desempenhava papel importante na política nacional, formando a elite intelectual da caserna, oferecendo a base de sustentação para os ideólogos da doutrina “desenvolvimentista” que então surgia. De meados de 50 até o início dos anos 60 – pós-guerra, Plano Marshall e auge da Guerra Fria -, a questão do desenvolvimento capitalista no Brasil se fazia por meio da produção econômica aliada a constante produção ideológica, cabendo ao Estado o papel principal, para o controle e a manutenção do desenvolvimento destas duas formas interligadas de produção. Este modelo de governo, levado a cabo pelo presidente Juscelino Kubitschek, pretendia propor uma política que privilegiaria a aceleração do processo de crescimento econômico.  

Juscelino acreditava que com o crescimento da indústria no país, consequentemente, assistiríamos a vinda da prosperidade, que por sua vez, não atingiria apenas a pequenos grupos particulares, mas, toda à sociedade. Para ele, a busca da prosperidade, do desenvolvimento, era marcada por um forte apelo social, coletivo, integrado. Os aspectos centrais de tal ideologia consistiam em ordem e prosperidade. Trata-se de uma formulação que sugere prosperidade e democracia representativa como condição para a soberania no interior da ordem capitalista. Nesta perspectiva só os países prósperos são soberanos, pois a riqueza é a condição da soberania e seria a pobreza a maior ameaça à democracia - formulação da Aliança para o Progresso da Casa Branca - Kennedy. Corresponde a um modelo de governo que orienta as suas ações concretas, aparentemente no âmbito do desenvolvimento econômico, porém, são essencialmente políticas, uma vez que a luta pelo desenvolvimento econômico traduz-se na luta pela preservação da democracia. 

Diante da conjuntura internacional a época, da polarização ocidente/oriente e da expansão dos regimes comunistas, para esta ideologia era, “(...) em torno da fermentação da miséria tornada consciente que rondam os inimigos da liberdade”. (STEPAN, 1988, p. 16). Na Guerra Fria, a ação dos países subdesenvolvidos vinculados ao bloco ocidental deveria ser preventiva, com o objetivo de eliminar as causas da insatisfação que ameacem a ordem estabelecida. Para combater a miséria, considerada o fermento da subversão, o desenvolvimento econômico demonstraria que as raízes do mal são econômicas e como tal, devem ser tratadas. Neste período, o comunismo deixa de ser tratado como uma questão de ordem meramente policial - embora a vigilância e a repressão sejam constantes.  Para JK, o combate à miséria seria a forma mais eficaz de se combater a expansão do bloco soviético. 

Do ponto de vista da ideologia desenvolvimentista, as zonas subdesenvolvidas são zonas abertas à penetração da ideologia antidemocrática e, a luta pela democracia, identifica-se com a luta contra o subdesenvolvimento e o comunismo. Nesta concepção, a expansão comunista na América representaria uma ameaça a hegemonia americana, aos valores "democráticos" e o capitalismo. Deste modo é que o governo brasileiro ao propor a Operação Pan-Americana, objetiva “uma revisão da política interamericana, com vistas ao fortalecimento da unidade continental, diante do crescente perigo comunista.” (STEPAN, 1988, p. 18).

Esta política interamericana que enfatizava o caráter econômico, visando a obtenção de capital, consistia em um modelo de cooperação política-econômica que deveria fortalecer os laços que garantiriam a hegemonia americana cuja direção moral e política caberia aos EUA – o grande vencedor da II Guerra no Ocidente. Este modelo de governo, no seu planejamento, tratava de enfatizar o aspecto coletivo da segurança, quando da concessão de uso e instalação de equipamentos eletrônicos pelo governo norte americano na ilha de Fernando de Noronha, para a segurança nacional e continental, trata-se como se vê, de uma suposta questão de defesa coletiva no bojo de concessões de soberania. Com a Guerra Fria, a questão da segurança seria influenciada por ela e definiria-se em função dela. A defesa da hegemonia do bloco ideológico - da comunidade político-ideológica - consiste na própria defesa nacional, o limite já não é mais o Estado-Nação, mas o sistema democrático ocidental conduzido pela pax americana. Trata-se nas palavras de JK, “(...) da preservação do nosso sistema de vida e, conseqüentemente, da nossa independência e da própria civilização cristã”. Deste modo, a definição ideológica da segurança nos países ocidentais consiste basicamente numa posição anticomunista subordinada a Washington. A segurança nacional se identifica, deste modo, com a segurança do ocidente como um todo. Como as condições precárias de existência é que favoreceriam o surgimento de ideologias comunistas e socialistas, daí é que o desenvolvimento econômico passa a ser encarado como questão de segurança . Segurança e desenvolvimento econômico constituiriam nas regiões pobres, aspectos de uma única questão. Para JK, se “(...) o problema da segurança do Brasil é problema de desenvolvimento (...)”, para resolver o primeiro seria necessário equacionar o segundo; por isso, é que deste modo, as realizações no campo econômico eram feitas também para servir a objetivos político-ideológicos. (STEPAN, 1988, p. 22/24).

A ideologia do desenvolvimento procurava demonstrar que a ajuda econômica dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos solaparia as fontes de expansão da subversão, contribuiria para a defesa comum e ainda garantiria a rentabilidade do capital investido, não sendo, portanto, uma questão de generosidade, mas de defesa mútua de interesses. Interesses estes, sobretudo, morais e espirituais, para JK a expansão comunista representaria uma expansão dos ideais antidemocráticos, antinacionais e, sobretudo anticristãos. Por isso é que para ele, o desenvolvimento econômico deveria vir acompanhado e estaria subordinado a determinações mais altas, privilegiando as ideias e princípios morais e espirituais, em contraposição ao materialismo, diluindo os conflitos e reduzindo a discussão em relação aos fundamentos deste sistema enquanto tal. 

A Doutrina de Segurança Nacional, implementada entre 64/67 seria o prolongamento crônico e exacerbado da ideologia do desenvolvimento, idealizada pelos militares que entre 52/56 estiveram formulando-a na Escola Superior de Guerra (ESG). Apesar de no período de 64 até os anos 70 a Escola Superior de Guerra não representar mais o centro do poder, tendo, consequentemente, o seu poder reduzido – devido à mudança do poder militar (Ministério da Guerra) para Brasília -, ela representaria ainda, “(...) a instituição-chave, responsável pela sistematização, reprodução e disseminação do corpus oficial da Doutrina de Segurança Nacional e seu relacionamento com a política. Assim, embora não fosse um centro de iniciativa, era a fonte autorizada da ideologia militar para os militares enquanto instituição”. (STEPAN, 1988, p. 58). Foram os documentos oficiais da Escola Superior de Guerra à base doutrinaria militar para a elaboração de todo o sistema de ensino e socialização militares, bem como de todas as instituições do poder publico apropriadas pelos militares e as demais instituições criadas sob sua inspiração – Lei de Segurança Nacional e Sistema Nacional de Informação – S.N.I.. A produção ideológica consistia, essencialmente, em instrumentos (publicações) e mecanismos (cursos) de socialização e vigilância.

Nessa nova sociedade pós 68, sob o pano de fundo de uma política econômica desenvolvimentista (milagre econômico) é que surge a política de integração nacional, cujo objetivo era o de não deixar regiões afastadas do país sob influencias subversivas nacionais ou estrangeiras.  A política institucional, por sua vez, orientada pelo regime, “(...) só consegue conceber uma política cultural entrelaçada com as políticas de segurança e desenvolvimento (...)”; de modo que, “(...) a presença do Estado como elemento de apoio e estimulo à integração do desenvolvimento cultural (...)”, torna-se imprescindível no contexto do desenvolvimento (milagre) brasileiro. (KHEL, 1986, p. 172). No entanto, tal desenvolvimento deve ajustar-se as exigências de uma nova dinâmica social, em consonância com a economia de mercado - (...) “a partir de 68; a implantação de um mercado de bens duráveis e semiduráveis, e o incremento do mercado de bens supérfluos (...)” -, e a emergente classe média urbana. (KHEL, 1986, p. 194).

A cultura passa a ser medida, nesse contexto, em termos do seu consumo e não da sua produção, como qualquer mercadoria disponível e descartável na prateleira do supermercado. Conforme as palavras do ministro da Educação (1978) Eduardo Portela: “Assim como numa grande cadeia de supermercados, os bens culturais devem ser cada vez mais acessíveis à população”. (KHEL, 1986, p. 173). O papel do Estado vem a ser então, o de viabilizar um sistema cultural nacional e integrador e não mais o de controlar a sua produção. “Não diretamente controlada, mas viabilizada pelo Estado, a televisão é a grande cadeia de supermercados distribuidora de bens simbólicos que realizou o projeto nacional de integração cultural menos pela sua qualidade ou índice de produção, mas, pelo seu consumo”. (KHEL, 1986, p. 173). “(...) o compromisso ético-social da empresa que faz televisão não tem que ser maior do que o da empresa que faz macarrão”. (KHEL, 1986, p. 209). Este “raciocínio” do diretor para “Casos Especiais” e séries da rede Globo, Paulo Afonso Grisolli, demonstra em comum com o do ministro Portela, a linguagem “pragmática” dos modernos burocratas da política e, dos homens de negócios da propaganda. Do ponto de vista da propaganda, “(...) a mercadoria produzida por uma emissora de televisão é um bem de consumo que pode ser comparado a qualquer outro (...)”. (KHEL, 1986, p. 210).

O conglomerado Roberto Marinho, no pós-68 configura-se então, como “grande empresa”, “moderna” e adequada às exigências do “autoritarismo tecnocrático ” - “(...) sob o pano de fundo de uma política econômica desenvolvimentista, implantam-se sofisticados aparelhos ideológicos e repressivos (...)”. (KHEL, 1986, p. 178). “Vivencia-se um momento de superestimação dos padrões de racionalidade, de pragmatismo, de eficiência, de onde emerge o tecnocrata como protótipo do realizador de um novo trabalho político (...)”. (KHEL, 1986, p. 178). Entre as mudanças introduzidas pela rede Globo na televisão brasileira a mais significativa, sem duvidas, está na concepção “empresarial” – mais adequada aos termos do grande capital. O “estilo” empresarial do jornalista Roberto Marinho coincide com os novos arranjos no jogo das relações de poder na Ditadura. Na Globo, a televisão deixa de ser dirigida por pessoas do meio artístico e jornalístico para ser comandada por homens de negócios, publicitários e marketeiros (Walter Clark, José Bonifácio Sobrinho o Boni, Mauro Salles, Homero Sanchez, Valter Avancini, entre outros). A programação passa a ser pensada em termos de estratégias de comercialização da televisão – o “padrão” de qualidade não são mais do que “(...) estratégias para se vender imagens”. (KHEL, 1986, p. 179). “A televisão comercializa basicamente o tempo; (...)”, diz Dionísio Poli, diretor de Comercialização da Globo, em palestra proferida no I Seminário do Grupo de Atendimento a Veículos de Comunicação, “(...) ou melhor, o tempo e a audiência que consegue captar para cada segundo desse tempo. O anunciante compra um tempo de contato com o publico,” (...). “(...) em termos de potencial consumidor (...)”. (KHEL, 1986, p. 210/211). A comercialização, por sua vez, exige controle, centralização, uniformização; a horizontalidade da programação começava a ser buscada na televisão brasileira - direção vertical; programação horizontal. A estratégia de “centralizar a produção” porque propicia melhor “controle de qualidade” também custa menos e é mais rentável. Trata-se como se vê, da aplicação de uma racionalidade econômico-empresarial que implicava desde o inicio um projeto de rede.

O projeto de “rede”, sob o comando de homens de negócios e em sintonia com as políticas institucionais (econômica, cultural, integração nacional) dos militares, vai transformar a televisão – leia-se rede Globo - no grande empreendimento comercial da década de 60 até os dias de hoje. Com efeito, na confluência de fatores que contribuem para esse processo, foi determinante o “pacto velado” entre a emergente classe media urbana e os militares e, entre estes e a também emergente rede Globo. A expansão da televisão – difusão em rede, aumento de 10.000% no numero total de aparelhos no período 50/80 – corresponde à concentração econômica da urbana classe media – em 78, “(...) 50% dos domicílios brasileiros não possuíam TV, da outra metade; 80% encontram-se nas regiões Sul e Sudeste”. (KHEL, 1986, p. 214). Com a chegada das “cores” (73/74), ocorre um incremento no mercado publicitário, e a concentração da propaganda na televisão - em 77 a televisão ficava com 63% das verbas de publicidade, deste montante, a rede Globo levava 85% dos investimentos. (KHEL, 1986, p. 211/212). 

De meados para o final dos anos 70, a política institucional de desenvolvimento econômico e integração nacional vai encontrar o seu ideal de desenvolvimento na concentração – “no conjunto brasileiro, 57% dos municípios tem televisão; ao passo que nas capitais a média sobe para 84%”. (KEHL, 1986, p. 214). Em 78, “(...) em relação aos dez principais anunciantes (...)” - do país -, “(...) a televisão fica com 85% das verbas para publicidade; sendo absorvida em 73% apenas nos mercados de SP e RJ”. (KEHL, 1986, p. 212). Os números oferecidos pelo mercado publicitário nos oferecem um “perfil médio” do “quadro” de desenvolvimento brasileiro.  Os departamentos Comerciais e de Pesquisas da Globo vão estabelecer o perfil do publico telespectador em termos de Índice de Potencial de Consumo, considerada enquanto “mercado consumidor”  ou “alvo” para a publicidade. Estabelecidos estes “padrões”, ao mesmo tempo em que privilegia a “horizontalidade da programação”, facilita o “controle de qualidade” e desenvolve a “qualificação” desse público, portanto, da audiência de um determinado programa. Pode-se perceber uma tendência aberta, a privilegiar de um lado a manipulação e de outro a concentração.   

A hegemonia das “Organizações Globo” , como preferiria o jornalista-empresário Roberto Marinho, assenta-se no seu projeto de “rede”, em consonância com a “política de integração nacional”, e no seu modelo empresarial-administrativo de fazer televisão, pensada prioritariamente como um empreendimento comercial. No discurso dos seus executivos, não pode haver duvidas, quanto à “missão” da televisão, dos seus “comunicadores sociais”, em sintonia com o governo, com a participação e o beneficio de todos.  “Motivação política, formação da vontade nacional, são tarefas impossíveis sem uma ampla sistemática de comunicação social, livre e apoiada em todas as mídias, em todos os veículos (...)”; nas palavras de Mauro Salles, em conferencia proferida na Escola Superior de Guerra em 74. (KHEL, 1986, p. 204). Em 77, em outra conferencia, o mesmo Sr. Salles, na Escola Superior de Guerra vai afirmar ser “(...) tarefa urgente da economia brasileira e do parque de comunicações sociais do país: incorporar ao mercado de consumo o quarto estrato da população – cerca de 20 milhões de brasileiros”. Adiante, prossegue: “São os sub-brasileiros, de responsabilidade de toda a nação. Na miséria, na fome, na opressão e na desesperança não existe opinião publica”. (KHEL, 1986, p. 206). 

É sintomático que esses discursos tenham mais em comum do que o simples fato de terem sido pronunciados na Escola Superior de Guerra, no entanto, verifica-se a capital importância desta instituição no projeto militar – conforme mencionado. Ademais, percebe-se ainda, sob uma nova e mais adequada roupagem ao contexto, a mesma associação automática entre “miséria” e “ordem” ou “desenvolvimento” e “segurança” e, sobretudo, que as práticas políticas ou as políticas institucionais não se renovam. De fato, o projeto de integração nacional levado a efeito pela ditadura militar, sobretudo, por meio da televisão (rede Globo), consistia em “construir” em interação com o publico uma “imagem de país e moralidade”. A televisão (rede Globo) corresponderia a um recurso eficaz e complemento do projeto uniforme do autoritarismo político. Eficiente veículo de integração nacional, difundindo um clima de confiança pelo “país que vai pra frente”, durante a sua “marcha pacifica” para o desenvolvimento, a rede Globo de televisão cumpriu importante papel no projeto militar de “dominação pacifica”. (KHEL, 1986, p. 203). Buscando a integração harmoniosa por meio da televisão, temos uma população unificada não enquanto cidadãos, mas enquanto consumidores, não enquanto povo, mas enquanto publico telespectador que articula uma mesma linguagem segundo um padrão definido.


Neste quesito, a fala do cineasta Walter Lima Jr. vai ser uma pérola: “(...) televisão é isso, é formato, na cabeça de um cara como o Boni televisão é só formato”. O caráter  uniformizador  imposto pela rede Globo de televisão está em que a emissora “(...) começou a se estruturar, não em termos de conteúdo, mas em termos de estética.” (KHEL, 1986, p. 244). A cor exigiu uma maior atenção visual em relação a cenários, figurinos, maquiagem, até chegar ao padrão de beleza dos atores nos dias de hoje. Contudo, a padronização da programação e a centralização da produção trazem mais vantagens do que facilitar o “controle de qualidade”. De um modo geral, tudo isso vai compor a marca do padrão Globo , padrão que se torna mais forte que o próprio conteúdo da sua programação no que isso diz respeito à formação do hábito no telespectador. 

Conforme Kehl, o Sr. Boni não deixa dúvidas: “(...) com uma boa estratégia de marketing forma-se o hábito, que é consequência e não causa”.  (KHEL, 1986, p. 186). Em decorrência do hábito tem-se a afetividade. Assim, a “identidade visual” torna-se tão importante para a televisão como o é a expectativa de que o telespectador crie afeto pela emissora; um não funciona sem o outro. Ela vai funcionar como um instrumento de personalização do veiculo para o telespectador e de controle e manipulação para a emissora, na medida em que vai ao encontro dos interesses comerciais da empresa. De fato, esta estratégia traz ainda a vantagem de que com o hábito e a afetividade, “(...) torna-se (a televisão brasileira) voz única – e voz sujeita ao condicionamento prioritariamente comercial”. (KEHL, 1986, p. 197). Para Bourdieu , entre os jornalistas, políticos, juristas e a televisão, existe uma capacidade constituída de atribuírem-se a competência ou a autoridade de “(...) defensores legítimos dos valores coletivos”. (BOURDIEU, 1997, p. 104). Esta capacidade da televisão em geral e da rede Globo em particular, de reconhecer-se enquanto tal, contribui para a produção de efeitos sociais reais e imediatos, onde observa-se, sobretudo, a forte influencia do poder econômico.  (BOURDIEU, 1997). 

Com efeito, ambos vão concordar que a “vocação” da televisão não é a de mobilizar/politizar, pois, seus procedimentos e seus agentes são incompatíveis com estes propósitos.  Deste modo, talvez a televisão ofereça justamente um estimulo oposto; para que o telespectador descanse tranqüilo em frente do seu aparelho, confiante de que as empresas privadas, os políticos/governo, os jornalistas e a televisão estão atentos e são os guardiães do desenvolvimento econômico e dos interesses coletivos. É a combinação harmoniosa destes fatores o que torna “(...) o papel controlador da televisão ainda mais eficiente, seus recursos ainda mais poderosos e as idéias ou a ideologia que ela veicula ainda mais facilmente hegemônicas”. (KHEL, 1986, p. 242).

Quando a integração nacional – via televisão - se dá ao nível do imaginário – estamos todos pertencendo a um todo unitário e harmonioso que nos contem e significa enquanto brasileiros. “Nós, (...) nos vemos refletidos todos os dias nas imagens de uma sociedade de consumo enquanto publico e enquanto mercado consumidor: assim se dá a integração dos brasileiros via EMBRATEL”. (KHEL, 1986, p. 176). Diante dessa suposta integração, acostumamo-nos a pensar na possibilidade de uma evolução social justa, que vai no sentido do inculto/despossuído ao aculturado/consumidor, dividindo a sociedade entre “os que precisam de ajuda” e “os que podem ajudar” com a televisão fazendo essa ponte. Nessa perspectiva, a desejada evolução só pode resultar do trabalho dos meios de comunicação que a estimula entre os excluídos; uma vez que também buscam e orientam-se por estes mesmos propósitos. Assim, a posse ou o desejo de posse torna-se a medida para a integração nessa sociedade; fechando-se um circulo supostamente progressista que gira sobre si mesmo. 

A ideia de uma cidadania pautada pela mídia - com prestação de serviços, informações de interesse coletivo, formação de "redes" de auxílio material, psicológico, emocional, etc. -, por enquanto, talvez seja a face de um incipiente populismo de mercado, por outro lado, vai ao encontro de outra ideia não menos perversa; a de que a “(...) televisão é o ponto de confluência onde se deve resolver simbolicamente a relação entre o poder político, o poder econômico e as necessidades da população”. (KHEL, 1986, p. 204). Talvez este seja um dos motivos do enorme sucesso dos “sensacionalismos de utilidade pública” - que vão desde “Gugu”, “Ratinho”, “Datena”, "Marcelo Rezende", etc. - entre a população. Este fenômeno consiste em que quanto mais a população acredita na televisão, menos ela vai acreditar na política ou no Estado para solucionar os seus problemas e/ou conflitos, daí que ela passa a recorrer à televisão e a mesma a canalizar e diluir os conflitos e interesses coletivos conforme os seus próprios propósitos. 

Referencias

FERREIRA A, As redes de TV e os senhores da Aldeia Global, in: NOVAES, A,(org.), Rede Imaginária, São Paulo: Cia. Das Letras, 2ª ed., 1991.

KEHL, Maria Rita B., Eu vi um Brasil na TV, in: COSTA, Alcir Henrique (org.), Um país no ar, São Paulo: Brasiliense Funart, 1986.

BOURDIEU, Pierre, Sobre a televisão, Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 

STEPAN, Alfred, Militares: da abertura a nova republica, Rio de Janeiro: 1988.

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