terça-feira, 18 de março de 2014

Modernidade, desenvolvimento e tradição: prática.

- (...) Vamos ao coronel... Quero pedir-lhe que te recomende ao doutor Castro, deputado.

A citação acima é um trecho do livro “Recordações do escrivão Isaias Caminha” do escritor Lima Barreto. Caminha é o jovem interiorano simples, sonhador e deslumbrado com a atração da cidade grande, urbana, cosmopolita, com o prestigio e poder resultantes do diploma de bacharel – retrato sem retoques do país dos coronéis e dos bacharéis do poder. Sem exageros, Lima Barreto foi um dos maiores cronistas de sua época, senão um dos maiores do país. A sua obra resume o seu tempo – a sociedade, política, cultura -, seu olhar aguçado atravessa o caráter que define a nossa gente e tradição, ultrapassando o tempo, permanece tragicamente atual. Assim, a pena do jornalista traz a profundidade critica da visão do sociólogo, antropólogo, psicanalista e, sobretudo, a verve e a sensibilidade dos grandes artistas. Mais de um século depois, guardadas as devidas transformações em extensão e escala, o celebrado “país de todos” é ainda o dos Castros, Loberants e Caminhas retratados por Lima Barreto. E os coronéis ainda existem, ainda que de outro tipo, adaptados aos novos tempos e circunstancias, de modo a perpetuar as relações de poder senhoriais ou "cordiais"que caracterizam a nossa sociedade. 

O Pronatec é mais um dos programas do governo federal gestados no departamento de marketing da Secom. De acordo com as exigências midiáticas, tem o pomposo nome de Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego. É, em tese, a porta de saída do Bolsa Família - ou a vara de pescar dos reacionários. O programa resulta de lei federal (12.513/11) - tudo na democracia normativa brasileira deve ter força de lei e ser tutelado pelo Judiciário - e da articulação entre o Ministério do Trabalho e o da Educação voltado para a qualificação e inserção de beneficiários de programas sociais federais no ensino profissional e mercado de trabalho.

Conheci-o efetivamente no nordeste (RN), região que - por diversas razões, sobretudo, socioeconômicas - tem concentrado a maior parcela das políticas sociais do governo - Pronatec, Bolsa Família, Mais Médicos, Crack é possível vencer, Juventude Viva, PETI, Projovem, ATER, entre outros. Do ponto de vista objetivo, consiste no repasse de verbas publicas para a iniciativa privada - ONG's, Sistema S, OSs, OSCIPs, Fundações, Universidades publicas e privadas, escolas técnicas. São essas entidades nos municípios conveniados as responsáveis pela execução do programa. Grosso modo, quem administra o programa no município é a Prefeitura, na medida em que é ela quem encaminha os beneficiários dos programas sociais do governo federal e divulga os programas na cidade. A seleção dos técnicos - coordenadores dos cursos, técnicos sociais, docentes, oficineiros - é de responsabilidade da entidade "ancora" do programa no município - aquela teoricamente com mais "experiência" ou "competência" para desenvolve-lo em todas as suas interfaces na cidades e que atende as exigências técnicas e legais do programa - curioso como quase sempre são entidades com alguma ligação política direta ou indireta. Alem disso é ela que realiza o diagnostico produtivo, socioeconômico e organizativo da localidade de modo a orientar os cursos de acordo com o potencial e demandas econômicas.

Não fosse a realidade determinada por interesses privados - econômicos e políticos -, relações de poder pessoais, complexa, dinâmica e contraditória, do ponto de vista ideal e teórico trata-se de um projeto ousado, inovador e irretocável! Porem como a realidade se impõe, na pratica o que vemos são pesquisas de fachada e infundadas, sem correspondência alguma com a dinâmica produtiva local, o perfil do publico alvo e as demandas da cidade - por insumos ou serviços. Oferta de oportunidades tanto para a contratação de técnicos quanto para a seleção de beneficiários feita de acordo com conchavos, troca de favores e interesses privados - distribuição de cargos e vagas para apaniguados ou aliados a despeito das formalidades, necessidade ou critérios técnicos. O esquema que faz da maquina "balcão de negócios" passa pela conivência ou cumplicidade de técnicos tanto quanto pela adesão da sociedade conforme as exigências de necessidade, lucro ou acomodação as estruturas de poder político, cujo único objetivo é a manutenção e perpetuação ad infinitum. O esquema envolve a seleção de famílias indicadas por vereadores, cabos eleitorais, lideranças sociais, caciques políticos, funcionários públicos a despeito da necessidade e perfil socioeconômico das demais, atestadas por laudos feitos sob encomenda por técnicos corruptos ou coniventes com a farsa. Embora conste de edital publico, com requisitos e exigências técnicas, entidade externa contratada para esse fim, a seleção dos técnicos para o trabalho é divulgada apenas no site do governo federal ou do município - sem obrigatoriedade -, restringindo-se muitas vezes ao circulo interno da administração. Assim não causa espanto que a despeito da “concorrência”, da ‘imparcialidade” e das "rigorosas exigências técnicas" ao final sejam selecionados o marido da Secretaria Municipal de Assistência Social - ele também secretário municipal -, o irmão do Chefe de Gabinete, o pai do Assessor do Prefeito, a sobrinha do Secretario Adjunto, o primo do Vereador ou o cabo eleitoral do deputado. Os resultados são o aproveitamento pífio, turmas desmotivadas, frustração, elevada evasão e inexpressiva inserção dos "beneficiários" no mercado de trabalho formal. Nada que a propaganda e as peças publicitárias desenvolvidas nos departamentos de marketing não possam compensar nas diversas mídias em termos de capital político e social.

Em 2003 passei seis meses como aluno ouvinte na pós da faculdade de Psicologia Social da PUC de SP, frequentando duas disciplinas por semana de um dos diversos Núcleos de Pesquisa da casa como postulante ao mestrado. Assim, desenvolvi projeto de pesquisa, participei de seminários, palestras, debates, grupos de estudos entre outras atividades do núcleo. Conheci durante esse período toda a bibliografia e o processo seletivo, conversei com colegas recém introduzidos no mestrado e doutorandos que me ajudaram a me preparar – tanto o projeto de pesquisa quanto para a seleção. Nesse processo, diante do espetáculo deprimente da bajulação em cima dos mestres e ferocidade da disputa por um orientador – para aqueles que já não os tinham desde a graduação -, ao final participei da seleção – aprovado o projeto e nas duas avaliações (teórica e idiomas), fui à entrevista sendo preterido por outros candidatos, coincidentemente egressos da casa e de outras unidades da PUC (MG, Campinas, Porto Alegre, RJ).

Durante a minha graduação, chamava a atenção duas coisas com relação ao corpo docente: o fato de muitos estarem mestrando ou doutorando na USP e serem egressos da casa e, que ao final do doutorado se transferiam pra lá como docentes. Era famosa a estória de que a Escola de Sociologia e Política fosse espécie de estagio docente dos aspirantes a USP ou trampolim para a Casa Grande da Sociologia – FFLCH/USP. Foi assim com Ângela, Fernando, Ronaldo, Julio, Iris, Marta, entre outros. Assim foi com alguns estudantes também, próximos desses docentes a sua época de ostracismo e estágio no purgatório - network é o nome atual para a cordialidade de outrora. Hoje são mestres e doutores. A (re) produção acadêmica também é criteriosa, objetiva, imparcial, impessoal, rigorosamente comprometida com o saber, a ética e a sociedade. Tudo é pessoal, de cima a baixo, aos amigos tudo, aos outros a frieza e o rigor da lei e da burocracia. Todavia o importante é não generalizar e nem desanimar! Antes cumpre celebrar o triunfo do individuo que supera isso ou resiste, o grande exemplo de que é possível impor o mérito e os critérios impessoais ao favor, a graça e a amizade. Não sei o que é pior.








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